martes, 22 de marzo de 2016

2006 - CAETANO VELOSO É VERBO E ADJETIVO

 

 
2006
Revista CULT
n° 105 - Ano 9
Agosto de 2006
 
 
 
 Caetano Veloso é verbo e adjetivo

 
Foto: Emiliano Capozoli Biancarelli
 
 
Caetano Veloso é reconhecido mundialmente. Em julho último, em Roma, durante turnê italiana, a procura por ingressos foi tão grande que a capacidade do anfiteatro de Ostia Antiga teve de ser ampliada, com a colocação de lugares extras nas escadarias. Entre músicas de seu repertório, ele cantou "Il mondo". A platéia foi ao delírio. Mas Caetano não é só um dos maiores nomes da história da música brasileira. É, também, influente pensador e crítico da nossa cultura. Dotado de clareza e sensibilidade, apurado sentido literário e valores humanos bem desenvolvidos. Tem densidade ética, um profundo sentido estético e a generosidade de poeta abençoado por todos os santos. Ajudou a moldar o comportamento de sucessivas gerações nas últimas quatro décadas e faz 64 anos de idade este mês.

O "Leãozinho" Caetano Veloso recebeu a equipe da CULT no apart-hotel em que vive sozinho, no Leblon, Rio de Janeiro. Participaram do encontro o  ensaísta carioca Francisco Bosco, a jornalista  Fernanda Paola e o fotógrafo Emiliano Capozoli Biancarelli. A poeta carioca Claudia Roquette-Pinto, também presente,  hospedou gentilmente  em sua casa os jornalistas de São Paulo, que perderam o vôo de volta. Não foi uma entrevista convencional, ortodoxa, mas uma conversa informal,  alimentada a sucos e sanduíches, em um lindo sábado de sol.

Caetano acabou de gravar seu 40º disco, depois de seis anos sem lançar um com composições inéditas - as últimas estão em Noites do Norte, de 2000. , que sai pela Universal, foi produzido pelo filho Moreno Veloso e pelo baixista Pedro Sá. Apenas três músicos participaram das gravações e estão presentes em todas as faixas: o próprio Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado "São doze canções, como nos LPs de vinil, e foram gravadas rapidamente, em dois meses", diz Caetano.

O autor de Verdade tropical, livro "importante e notável" segundo o crítico Roberto Schwarz, já disse e repetiu: "o Brasil vai dar certo porque eu quero". CULT acha que vale a pena acreditar nessa possibilidade. Depois de tantas esperanças desfeitas, a aposta na idéia forte e luminosa de Caetano tem no mínimo razões tão factíveis quanto as que nos levaram a embarcar com a mesma fé em outros barcos. Então, ficamos assim: o Brasil vai dar certo porque Caetano quer, a revista quer, o leitor quer e todos nós queremos.

Daysi Bregantini

CULT - Um traço marcante do seu pensamento é a ternura. Seu pensamento crítico sobre o Brasil, conquanto sempre exigente, é impregnado dessa ternura. Você se refere ao povo santamarense ( Santo Amaro da Purificação, na Bahia, cidade natal de Caetano) como "povo doce e moreno". No entanto, há indícios de mudanças significativas nesse êthos coletivo: o agravamento da miséria, a hostilidade entre classes sociais distintas, o caráter não pragmático da violência, entre outros. Você acha que o Brasil está perdendo a ternura?
  
Caetano Veloso - A essa lista que você apresentou faltou um traço essencial, que é a novidade do fator racial à frente de todas as diferenças. Eu acho que essa entrada do fator racial como motivo de ódios organizados é a novidade mais contundente contra essa auto-imagem terna. É uma outra maneira de se referir ao famoso homem cordial, que é uma expressão criada pelo Sérgio Buarque de Holanda, mas, para ele, tinha um sentido diferente daquele que veio a ter popularmente. Todas as ressalvas que ele fez depois, e que outros também fizeram, são válidas e intelectualmente necessárias. Mas a visão que ficou consagrada revela alguma coisa que está mais no fundo da própria idéia do Sérgio; a visão popular atingiu o inconsciente do conceito dele. Eu penso que a imagem do brasileiro como terno e doce está sendo posta em xeque historicamente, mas, sobretudo, está sendo muito atacada por movimentos da alma que se querem, talvez, superiores a isso. Acho que eles complexificam a nossa imagem. O elemento fundamental dessa mudança é o fator racial. Eu já estou um pouco cansado de tantos ataques. É como se dentro de mim tivesse uma virada em defesa do homem cordial e da democracia racial contra esse racismo.
 
CULT - Contardo Calligaris, em um artigo publicado há alguns anos, na Folha de S.Paulo, fala sobre o fim do homem cordial. Segundo ele, grosso modo, a realidade econômica do Brasil ficou tão estratificada que não é possível mascarar o conflito racial através do afeto.
Na sua opinião, além disso ser uma dinâmica de contradições internas da própria sociedade brasileira, por quem a ternura e a cordialidade estão sendo atacadas? Pelos movimentos negros, que assumem estratégias políticas fundamentadas em modelos americanos?

C.V. - Sim, mas não exclusivamente. O Contardo Calligaris, por exemplo, sem que aquilo fosse propriamente uma  grande novidade, defendeu, no livro Hello Brasil (que saiu justo quando eu estava escrevendo Verdade tropical, no qual polemizo sobre isso, pois é uma reportagem comprida, tudo que me passava pela cabeça naquela época eu escrevia), uma atitude bem veemente contra a idéia da democracia racial, a antropofagia de Oswald de Andrade e esses mitos brasileiros autocomplacentes e auto-indulgentes. Eu respeito muito esses ataques. Há ataques de vários lados. No ensaísmo, no movimento negro. Outro dia tive uma discussão com MVBill a respeito disso. Ele estava se reportando a um embate que teve sobre essa questão com o Arnaldo Jabor, que estava numa posição oposta à dele. Eu acabei não me contendo e iniciei uma discussão, onde eu queria fazê-lo ver que ele precisava levar em conta que grande parte do que é, não só movimento de consciência da questão racial, como o movimento específico do hip hop, ao qual ele se filiou, tem muito do desejo brasileiro exposto em várias áreas de ansiosamente imitar os americanos. E, de certa forma, com isso, se reafirmava uma humilhação dos brasileiros perante os americanos, o que não difere da humilhação dos negros perante os brancos. Há alguma coisa aí que fica de fora quando a pessoa não coloca certos elementos na equação. Eu pedi a ele que pusesse.
CULT -  A sua posição é de que a gente deve borrar as fronteiras da raça, ao invés de radicalizar a segregação, mas ao mesmo tempo sem cair numa autocomplacência edulcorada da nossa realidade?

C.V. - Isso. Não tenho nada a opor a isso.

CULT - Sobre a questão das cotas para negros nas Universidades, qual a sua opinião a respeito?

C.V. - Eu não sou muito simpático, não. Acho que não é assim tão fácil. Não é uma solução simples e nunca será. Há nisso um desejo de imitação dos programas americanos.
 
CULT - O que pensa dos Estados Unidos?

C.V. - Eu sou um grande admirador dos Estados Unidos, não tenho raiva nem ressentimento. Não acho que nossa miséria é uma conseqüência da maldade, do egoísmo deles. A nossa miséria é resultado da nossa própria incompetência, e a grandeza deles é conseqüência da competência deles, que se expressou na visão espetacular dos fundadores da democracia americana. Muita gente diz que o povo brasileiro tem um grande ressentimento contra os Estados Unidos, que se sente oprimido e que tem vontade de dar o troco. Houve até quem aplaudisse a derrubada das torres do World Trade Center. Uns, publicamente, outros, à surdina, mas não que eu não ficasse sabendo. E, possivelmente, muitos eu não soube. Mas, por outro lado, o Brasil é um país onde as pessoas pobres batizam seus filhos com nomes de Jefferson, Washington, Wellington, o que eu acho maravilhoso. Quando vai modernizando coloca Michael, por causa do Michael Jackson. Eu acho que isso quer dizer muita coisa e de certa forma, fala de algumas regiões mais profundas da alma brasileira do que essa raivinha impotente contra os Estados Unidos.

CULT - Em plena onda antiamericana, você lançou o CD A Foreign Sound...

C.V. - Fiquei muito contente com essa coincidência. Foi a única coisa de que eu gostei muito no CD. Fazer com tanto atraso um disco, que eu nem queria mais fazer, achava desnecessário, atrasado e irrelevante por causa de tantas coisas que aconteceram na música nesse século. Mas a coincidência de ser no ápice do antiamericanismo internacional foi um aspecto que me pareceu interessante. Estimulou-me a continuar fazendo A Foreign Sound.
 
CULT -  No livro O mundo não é chato (Companhia das Letras, 2005) há duas palavras que são fundamentais para seu pensamento crítico, e também norteadoras de suas produções artísticas. Uma delas é a competência. Em um dos momentos mais surpreendentes do livro, você fala sobre Carmen Miranda, chamando atenção à competência dela, à precisão de seus gestos, que se parecem com os de um desenho animado. Falando sobre o Cinema Novo, você comenta a precariedade técnica, aquele velho problema crônico do cinema nacional. Você fala também da competência do cinema contemporâneo, da destreza de um Cacá Diegues. Você se queixa da má qualidade das gravações de seus discos das décadas de 1960 e 1970. Mas, em contrapartida, conserva uma exigência não menos importante, que é a da experimentação. No visionário ensaio "Diferentemente dos americanos do Norte" você exige que o Brasil radicalize sua experiência histórica, afirmando e consolidando sua singularidade. Você acha que o Brasil tem se tornado mais competente porém menos experimental?
C.V. - Começando por sua observação sobre Carmen Miranda, chamo a atenção para um fato curioso: Carmen não sabia sambar. Sendo exímia dançarina, ela estilizou os movimentos oriundos do candomblé - segundo Caymmi, ensinados a ela por ele - num idioma gestual espanhol, com mãos em flamenco kitsch; mas será que nem olhou para os pés das passistas? Ao mesmo tempo, há malandragem carioca nas recuadas da parte baixa de seu corpo. Tudo isso faz com que se pergunte: as meninas brancas terão aprendido a sambar décadas depois do auge de Carmen? Mas, voltando ao sentido de sua pergunta sobre a competência e a experimentação: será que uma coisa é o preço da outra? Em geral não acredito nas exclusões. Lembro-me que uma vez o Eduardo Giannetti me perguntou se eu não achava que ao respeitar os sinais de trânsito, parar no sinal vermelho e ter uma vida civil mais racional o brasileiro perderia o jeito, a inspiração e o charme que ele tem de ser brasileiro. Eu sinceramente não soube responder, mas dentro de mim, que respondo agora a uma pergunta semelhante feita por você, não consigo acreditar nessas exclusões como necessárias. Suponho que há sempre uma terceira saída. Já escrevi, e reafirmo agora, que o Brasil precisa tornar-se o mais diferente possível de si mesmo para poder se encontrar.
Algumas das aventuras experimentais mais notáveis produzidas por brasileiros eram também vitórias no desafio da competência. João Gilberto, por exemplo.
 
CULT - E quanto ao Cinema Novo?

C.V. -  O Cinema Novo é o que há de oposto. O Glauber Rocha é um caso oposto, a verdade é essa. Você gosta do filme Deus e o Diabo na terra do sol, não porque seja mais bem feito que Casablanca ou Cidadão Kane, mas porque é um filme cheio de sugestões e com algo que não se vê em outros filmes, com uma grande liberdade em experimentar algumas coisas no cinema do Brasil. É claro que Glauber recebeu elogios, até um muito longo de Scorsese, que, quando foi homenageado pelo Cahiers du Cinéma, em um número todo dedicado a ele, escreveu apenas um artigo e era sobre Glauber. Há também um filme de Godard, O vento do Leste, no qual Glauber aparece em uma bifurcação de estrada. Bonita a cena, meio alegórica. Então o Glauber mereceu de grandes figuras do cinema internacional o reconhecimento, tal como o João Gilberto recebeu de Milles Davis e de muitos outros. Porém, os aspectos que interessaram aos colegas de João incluíam a excelência técnica, e os aspectos que interessaram aos colegas de Glauber, evidentemente, se resumiam mais ao espírito da coisa do que à capacidade de feitura.
 
CULT - E a competência em relação ao seu próprio trabalho?

C.V. - Penso nisso porque sou muito crítico e o considero muito insatisfatório. Nem todos os discos brasileiros têm essa exibição de incompetência que aponto nos meus e de alguns colegas próximos. Lembro de uma época em que eu e Gil ficávamos perguntando por que nossos discos não saíam com um som como o dos de Roberto Carlos. O contrabaixo dos discos do Roberto saía com um som redondo, preenchia quase como uma gravação americana e a gente não conseguia. Então o Gil dizia assim: "tem um espírito do subdesenvolvimento que fica aqui dentro do estúdio". O violão do João Gilberto nos três primeiros discos ( Chega de saudade, O Amor, o sorriso e a flor, João Gilberto) é gravado de uma maneira extraordinariamente boa. Nunca mais o violão dele foi tão bem gravado, tão bem microfonado. As gravações dos Mutantes, feitas na mesma época que as nossas, eram infinitamente superiores às nossas. O Gil, como músico, é a competência top. Eu sou meio incapaz musicalmente. Agora, do disco Caetano em diante -  por exemplo em Estrangeiro -  eu venho conseguindo fazer discos mais profissionais.
 
CULT -Mudando um pouco de assunto, o que você achou da repercussão crítica do livro O mundo não é chato? Você acha que há uma espécie de resistência oficial ao seu pensamento crítico? Uma espécie de correlato do velho problema que certos discursos eruditos e acadêmicos têm em relação à legitimação do vigor, da radicalidade, da inventividade e do caráter crítico da canção popular? Quando você lançou o filme O cinema falado houve uma resistência prévia ao filme, que revela, necessariamente, um fisiologismo de defesa de território. Você acha que, assim como alguns cineastas não lhe deram o direito de fazer um filme, há forças intelectuais no Brasil que não lhe dão o direito de exercer a prosa crítica?

C.V. - Ninguém me tira o direito, não. Ninguém me impede de publicar. Mas também eu não tenho a ambição de publicar textos críticos. A primeira vez foi em Alegria, alegria - coletânea de textos dispersos e publicados entre 1966 e 1976, organizada por Waly Salomão - que eu ouvi esse mesmo tom de desprezo. Mas não fico frustrado, não espero muito. Agora, isso que você descreveu quando falou de O cinema falado é verdade. Isso acontece comigo e continua acontecendo, talvez seja a razão porque não há a atenção que você desejaria a um livro como O mundo não é chato. Eu nem prestei muita atenção à repercussão que teve esse livro... Verdade tropical, sim, mas porque tinha acabado de escrever e quis saber o que as pessoas falavam. Tem coisas muito chatas também. A Folha de S. Paulo fez todo um número da Ilustrada ou do Mais!, não me lembro, para criar problemas com o livro. Não para uma apreciação remotamente razoável. Era um negócio programaticamente chato. E acho que se deve a isso mesmo que você descreveu: ressentimento. Mas, por outro lado, não acho que seja só isso. Acho que há desinteresse genuíno. Não sou um sujeito preparado pra isso. Não me preparei nem estou me preparando para ser um ensaísta. Eu me lembro que, quem primeiro falou contra isso de uma maneira contundente e que me impressionou muito bem, foi o José Guilherme Merquior.
 
CULT - Ele disse que você é um "pseudo-intelectual de miolo mole"...

C.V. - Eu adoro "pseudo-intelectual de miolo mole" (risos). Ele, Merquior, foi o primeiro que explicitou a questão tão honestamente, defendendo o território. Eu concedi uma entrevista a IstoÉ, na qual fiz uma brincadeira sobre ele, que acabara de sair numa revista posando no meio de livros. Era gozado, porque ele falava mal de Freud e da psicanálise dizendo que não valem nada. Eu disse que detestei aquilo porque ele estava falando mal de narcisismo e ficava posando no meio de livros como um pop star. Ele levou isso como se eu estivesse dizendo que os ensaístas estavam querendo tomar o meu lugar. Fez uma inversão inteligente. Bem sacada, de polemista experimentado. Merquior não era bom crítico literário. Quando conheci o Augusto e o Haroldo de Campos, li tantos artigos maravilhosos deles, que percebi que José Guilherme, do  ponto de vista da apreciação literária, deixava a desejar. Mas eu não sou um intelectual preparado para competir nem com ele, nem com um Roberto Schwarz . Não me preparei pra isso. Passo a maior parte do meu tempo em uma vida frívola de compositor de música popular. Fico no estúdio com colegas cantando, tocando, volto pra casa pra ver a música e tenho que relembrar. Posso captar uma harmonia com certa dificuldade, mas posso. Depois de algum tempo, esqueço. Minha acuidade musical não é muito forte, então tenho que me debruçar um pouquinho sobre canções. Por exemplo, eu quero cantar "Moon river" no show de abertura da exposição de Pedro Almodóvar em Paris, entre outras canções que tive que tirar. Umas são mais fáceis. "Ne me quitte pas", acho uma harmonia chata de tirar, feia. Mas "Moon river" queria tirar. Fiquei muitas horas perdendo ou ganhando meu tempo para cantar a música. "Moon river" não pode ser comparada com Ulisses, de James Joyce. Entende, eu não tenho tempo de estudar nem Derrida, Kant ou Proust. Não que não os tenha lido, li alguma coisa de todos eles, mas não posso me dedicar a isso.
 
CULT - A erudição também não é uma condição fundamental...

C.V. - Sim, mas o cara que se prepara para isso e vive concentrado nisso é mais capaz. Não me sinto assim. Sou aquele personagem "pseudo-intelectual de miolo mole", mas ao mesmo tempo consigo cantar. Tenho canções que fazem sucesso, outras nem tanto, mas não são irrelevantes. Minha opinião sobre mim é essa. Juro por Deus...Eu não acredito em Deus (risos).
 
CULT -  O que pensa sobre a música popular brasileira de hoje? Volta e meia dizem que o momento está fraco. O Chico Buarque aventou, naquela entrevista à Folha de S. Paulo, a hipótese de que a canção talvez seja uma forma histórica acabada. Você acha que a canção acabou ou está acabando?

C.V. - O Chico conta que foi um italiano que perguntou a ele se não achava que a canção popular, como conhecemos, é um negócio do século 20 que acabou, como a ópera foi para o século 21. Ele disse que ficou pensando nisso, mas que não crê totalmente nisso e nem gosta, porque seria contra ele mesmo, que continua fazendo canções. Eu também não penso na morte da canção e no fim das coisas. Acho que o fim das coisas é uma moda que já passou.
 
CULT - O que te interessa mais na canção popular atualmente?

C.V. - A canção popular está cheia de vertentes. Coisas interessantes e continuidade. Tenho ouvido novamente a rádio MPBFM, que toca gravações brasileiras. Ouço rádio no carro, que são poucos minutos, mas me dá uma idéia. Convivo com Moreno, meu filho, com Kassin e Domênico, que convivem com Pedro Sá. Ouço coisas de Lucas Santana, de Max de Castro e de Ed Motta. Não consigo sentir que há uma falta de vitalidade. Acho que no momento não há uma indicação de qual é a perspectiva hegemônica, mas não sei se isso é mau. Não sou muito ouvinte de música, conheço gente no mundo inteiro que é ouvinte de música, que realmente ouve. Ouço, sempre ouvi, casualmente.
  
CULT - O que pensa sobre a crítica musical brasileira? 
 
C.V. -  Sinto que há uma tendência crítica no Brasil a adotar essa linguagem dos tablóides de rock'n roll inglês. São garotos que nem são tão mais garotos assim, que escrevem para tablóides de rock e tomam uma atitude como se fossem mais radicais que os músicos. Ficam ensinando atitude e rebeldia aos artistas. É engraçado, mas é tablóide, quem compra já sabe o que é. Já aqui se dá na grande imprensa. Outro dia li uma crítica sobre o show dos Mutantes em Londres, na qual o jornalista dizia que o show tinha sido tudo aquilo que os Mutantes nunca foram e nunca deveriam ser: previsíveis. Mas como aquilo poderia ter sido previsto? (risos) Era imprevisível até que acontecesse, ele queria o quê? Que o Serginho e o Arnaldo reaparecessem com 17 e 15 anos e surpreendessem a todos por terem voltado no tempo? No fundo é um negócio de purismo no rock, que é uma contradição em termos.
 
CULT - É certo que com a geração formada pela TV, a cultura brasileira vai se tornando menos letrada e cada vez mais dominada pelos signos visuais. Nesse processo a literatura é esvaziada, perdendo a força no jogo da cultura. Como você acha que isso se manifesta na MPB? Você pertence a uma geração que levou a aproximação entre a literatura e a canção às mais inventivas conseqüências. Como percebe, hoje, a relação entre literatura e canção popular, sobretudo nos compositores mais jovens?

C.V. - Acontece que sou da geração que pegou a moda da expressão não escrita, não livresca, não acadêmica, como importante. Em suma: nós tivemos animação com a posição de Marshall McLuhan, o fim dos livros. As imagens, a TV e a música popular, tudo fala mais alto que a cultura tradicional. É a contracultura. Mas o McLuhan tinha uma sistematização desse negócio muito interessante. Era uma coisa típica da minha geração. Evidentemente que eu tomava aquilo com um grão de sal. Nunca adotei, mas me interessou. Isso passa por Merquior, passa por Chico escrever romance e pela reação de críticos e colegas a isso. Algumas críticas foram inacreditáveis.
 
CULT -  Você leu Budapeste?

C.V. - Li.
 
CULT - O Chico foi finalmente dar em Budapeste...(risos)

C.V. - É...Ele deu em Budapeste (risos). Gostei muito do livro, acho que dos três que ele escreveu é o mais lindo de todos. Agora, tive um impacto mais excitante com Estorvo, que foi o primeiro desse período. Mas não chega a ser um romance totalmente consumado como é Budapeste. O livro do meio, Benjamim, é o que menos gosto dos três. Também tem coisas lindas, soa bem...Ele tem aquele sentimento muito adequado aos sons das palavras e aos sentidos desses sons. Muito equilibrado, elegante, isso me dá prazer. Budapeste é um romance bem estruturado. Lembro que Diogo Mainardi foi quem mais esculhambou com o Chico. Fora aquele que é só crítico, Wilson Martins, que esculhambou com Estorvo e colocou-o junto ao livro de Jô Soares. Eu protestei no Fantástico de uma maneira um pouco grosseira, mas não podia deixar de reagir. Não tenho nada a perder. Não tenho uma reputação intelectual, não tenho porra nenhuma. Wilson Martins juntou os livros do Chico e do Jô porque, para ele, são pessoas que aparecem na TV e escrevem livros. Não tem nada a ver o Xangô...com Estorvo. Ele ainda diz que Estorvo é pior porque tem ambição literária maior. Só aparece o preconceito. Agora, quando saiu Benjamim, o Diogo Mainardi era crítico literário da Veja, isso foi antes de ele virar essa personagem. E, como crítico, ele escreveu um dos piores artigos de crítica da história do Brasil sobre Benjamim. Dizia assim: O Chico é bonito, ganha milhões fazendo canções, vendendo discos, tem os olhos verdes, as mulheres vivem atrás dele. Por que precisaria escrever um romance? E esculhamba. Deixa as últimas três linhas para dizer quase nada sobre o romance propriamente. Simplesmente desqualifica o fato de Chico ter tido a remota idéia de um dia escrever um romance. Esse mesmo cara diz, repetidas vezes, que o maior escritor brasileiro é Ivan Lessa, entende?  Sou fã do Paulo Francis e do Millôr Fernandes desde menino. Do Millôr, desde os 11, e do Francis, desde os 17, quando meu irmão Rodrigo que é mais velho (dois irmãos acima de mim) e muito querido, fez uma assinatura da revista Senhor para mim, ainda lá em Santo Amaro. Eu fiquei fã do Francis para sempre. Mesmo inimigo dele continuei seu fã. Ele era um sujeito engraçado, tinha uma boa personalidade jornalística. Seus romances são ruins; As filhas do segundo sexo, pelo amor de Deus...É muito ruim! Cabeça de papel é um livro ruim com um título bom. Os livros dele mais jornalísticos, meio memorialistas, O afeto que se encerra e Trinta anos esta noite são melhores que as ficções, mas como figura jornalística ele era muito bacana, o mais inteligente de todos de O Pasquim. O Glauber me avisou que ali, um cara bom de coração, em quem se podia confiar, chamava-se Tarso de Castro. Porque Millôr e Francis não...É chato falar coisa que pessoa morta falou, porque pode parecer desonestidade, mas é fato. Não importa o que o Glauber disse ou não. Ele fazia a política dele com as pessoas e comigo também. Eu falei da minha admiração pelo Francis e pelo Millôr porque os acho grandes. O Lessa, não. Acho menor. Acho bonitinho e engraçado o que ele faz. Parece bibelô mofado. Não considero a sua prosa melhor que a do Chico. Para o mesmo cara que agrediu a literatura de Chico com tanta veemência dizer que o maior escritor brasileiro é o Lessa...
 
CULT - Entrando em política, nas eleições passadas, você flertou com o Serra e depois afirmou publicamente o Mangabeira Unger; acabou votando no Lula...

C.V. - Eu nunca flertei com o Serra. Meu candidato era Ciro Gomes. Quando foi acabando meu interesse pelo Ciro, em função de suas atitudes, acabei votando no Lula. Eu falei que nunca flertei com o Serra, mas já, sim: no segundo turno, sabendo que Lula ia ganhar, não votei no Serra, mas disse que votaria para que Lula entrasse sabendo que há uma resistência a atitudes inconseqüentes ou demagógicas que ele pudesse vir a tomar. Como um freio. Terminei vendo que as preocupações antes do Lula entrar eram que, por ele ser da turma da esquerda, do PT, se sentisse no direito de fazer coisas irresponsáveis que pusessem a economia brasileira em risco, de uma maneira não bem planejada. Porque eu gostaria que se mudasse essa filosofia, por isso me interesso pelo Mangabeira, porque ele é experimentalista e intelectualmente competente. O que aconteceu com o PT foi que eles ganharam e mostraram logo que não ofereciam risco na área da economia e se deram o direito geral no resto das coisas. Porque são de esquerda podem fazer o que quiser. Uma das burrices do Fernando Henrique Cardoso [FHC] foi a reeleição. É quase impossível, no Brasil, um presidente não se reeleger porque não há campanha igual à da presidência da república em um país onde tanta gente é mal informada. Ainda mais o Lula, que é um mito, uma figura simpática. O saldo da política econômica do Palocci [ Antonio Palocci, ex- ministro da Fazenda ] é competência e conservadorismo. O Lula, como um todo, não foi lá nem tão competente, nem tão conservador. Quanto à política internacional, não se sabe ao certo se foi mais inventiva e corajosa ou mais incompetente, porque no momento o Brasil está meio a reboque de Hugo Chavez [ presidente da Venezuela].
 
CULT - Em quem vai votar?

C.V - Não voto em Lula, de jeito nenhum. Li as entrevistas do Chico e não gosto desse aspecto. Ele disse que estou certo ao me referir que a esquerda acha que pode fazer o que quiser, mas que esqueci que com o FHC era a mesma coisa. Não era. FHC foi de esquerda, mas na presidência não era; isto é, tem uma trajetória pública de intelectual de esquerda, mas no exercício da Presidência da República era visto por muitos, sobretudo pelo PT, como sendo de direita. Seja como for, não havia precisamente essa mistura de arrogância e arbitrariedade que julga justificado subordinar os meios aos fins, que é o que fez o Zé Dirceu: acreditando que pode tudo porque é de esquerda. Isso leva a Stalin. Tenho horror a isso. Pavor desse negócio de esquerda: "Como nós temos a boa posição, primeiro vamos ganhar o poder. Nunca meu time ganha, agora que ganhou vem toda a elite branca contra, querendo derrubar". Ninguém fez o que eles fizeram. O Lula disse que foi traído - por quem? Ao mesmo tempo se dizia ameaçado pelas elites. Você não pode caracterizar como um golpe de elite porque os delitos foram todos comprovados. O Lula tirou Palocci, Zé Dirceu e o PT tirou Delúbio. Não é que houve uma tentativa de denegrir.

CULT -  Você faz 64 anos este mês. Como é a experiência de envelhecer?

C.V. - Evidentemente que tem uma porção de coisas de envelhecer que são mesmo ruins. Por outro lado, você não liga muito mais para o que dizem sobre você. Mas não sou muito bom para ser maduro. Ainda tenho o espírito adolescente, então fica meio desconfortável.
Quanto às coisas ruins: por exemplo, você está me vendo de óculos. Eu, que nunca tive problema de visão, para ler, preciso de óculos. No início é um aborrecimento danado, é mesmo aquela descrição da velhice, não como uma batalha, mas como um massacre, uma série de ataques sem apelação. Mas, no interior desses "ataques", surgem outras possibilidades; passei a sentir ternura pelos óculos, prazer em achá-los, pô-los, ver as letras em foco: assim, apesar de tudo, fica mais nítido que ser é gostoso. 
 
 

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