jueves, 24 de marzo de 2016

2001 - CAETANO VELOSO, O POETA DA MPB - 1a. Parte


 
2001
Revista CULT 
n° 49 - Ano V 
REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA 
Agosto de 2001


Caetano Veloso,
o poeta da MPB



A o l e i t o R 
Manuel da Costa Pinto


Não, caro leitor, a CULT não se transformou numa revista de

música... O fato de termos escolhido como capas do número

de julho e da presente edição o roqueiro Jim Morrison e o

compositor Caetano Veloso, respectivamente, não quer dizer

que mudamos nossa linha editorial. Essa coincidência se

deve, fundamentalmente, a um acaso jornalístico. No mês

passado, completaram-se trinta anos da morte de Morrison,

provavelmente o maior poeta do rock. E, neste mês de agosto,

comemora-se o aniversário de Caetano, que, dentre os gran-

des compositores da MPB, é possivelmente aquele que dialo-

ga com maior intensidade com a poesia brasileira – a exemplo

do que acontecia com o próprio líder da banda The Doors em

relação às literaturas norte-americana e francesa. Mas a coin-

cidência de datas também diz muito sobre a proposta da

revista de ampliar a reflexão sobre a literatura para além dos

cânones tradicionais. Essa abertura muitas vezes se dá dentro

do próprio domínio da literatura – caso dos dossiês sobre

“Ficção científica brasileira” (CULT 6), “Futebol & Literatura”

(CULT 11) ou “Literatura de testemunho” (CULT 23) –, mas

também está presente no diálogo que estabelecemos entre a

linguagem escrita e outros códigos criativos e reflexivos –

como no dossiê sobre a “Bienal Antropofágica” (CULT 15) e

nas entrevistas com os artistas plásticos Rosângela Rennó

(CULT 6), Vik Muniz (CULT 16) e Cildo Meireles (CULT 31) e

com a roteirista de cinema Suso Cecchi d’Amico (CULT 19).

É nesse contexto que se inserem as edições sobre Morrison e

Caetano. No caso do presente número, especialmente, o de-

poimento conseguido por Carlos Adriano e Bernardo Voro-

bow é tão rico de informações e reflexões que decidimos,

junto com os entrevistadores, ampliar o leque de abordagens

do trabalho de Caetano com uma entrevista em que Celso F.

Favaretto analisa a poética tropicalista, com um ensaio do

próprio Carlos Adriano sobre o filme O cinema falado e com

um texto do professor Pasquale Cipro Neto sobre a música

“Língua”. O resultado, como o leitor poderá ver, é um número

de homenagem a uma personalidade que revolucionou a

música popular brasileira com os sentidos sempre voltados

para as pesquisas formais e intelectuais que acontecem no

âmbito da chamada “alta cultura”. E é esse encontro entre o

popular e o erudito, prosa e poesia, música e literatura, vida

e filosofia que a CULT celebra por meio da presença de

Caetano Veloso


        

Foto: Carlos Adriano



Entrevista 04

Celso F. Favaretto lanca novas luzes
sobre a obra de Caetano Veloso

 
Entrevista
CELSO F. 
FAVARETTO



Um dos mais finos intelectuais brasileiros,

Celso F. Favaretto é um especialista nas

questões da arte e da cultura nacionais das

últimas quatro décadas. Professor da

Faculdade de Educação e da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas, ambas

da USP, é autor de Tropicália: Alegoria alegria

(Ateliê Editorial), um dos estudos seminais

sobre as revoluções do movimento, e de A

invenção de Hélio Oiticica (Edusp/Fapesp),

acurado penetrável crítico sobre o criador

de bólides e parangolés. É também um dos

coordenadores de Arte em Revista (Centro

de Estudos de Arte Contemporânea da

USP/Kairós), que, em oito números

(publicados entre 1979-84), examinou a

produção do país nos anos 1960, 1970 e

1980. Nesta entrevista, ele lança novas luzes

sobre a literal e literária contribuição de

Caetano Veloso às inovações artísticas.



Carlos Adriano

Bernardo Vorobow

  

Cult Como você sintetizaria a contribuição de Caetano
Veloso para a instauração de uma nova poética na música
popular brasileira na época do tropicalismo?
Celso F. Favaretto Caetano Veloso é o pensamento na
canção. Em sua música, no seu canto, surpreende-se uma
reflexão que incide na forma, nos encantos e no alcance
cultural deste modo tão privilegiado no Brasil de manifes-
tação da sensibilidade. Certa vez, Caetano disse que o
tropicalismo foi “um momento de aguçamento e de expli-
citação da função crítica da criação”. Ainda hoje, este é um
dos crivos mais adequados para a análise de toda a sua
produção. Se, naquele momento, a criticidade provinha
do destaque à negatividade da arte de vanguarda “ às
questões que envolviam a produção do novo, aos desafios
implícitos nas relações da arte com as novas condições de
produção, em um meio artístico polarizado por discussões
acerca da arte participante e das relações com o mercado”,
a função crítica, contudo, não se extinguiu posteriormente.
Ela se transformou, tornou-se menos empenhada, livre
das pressões daquele momento candente, traduzindo-se
em discretos ou nuançados modos de enunciação, no
pensamento e na sensibilidade. A função crítica permanece
tanto na ênfase auto-referencial à estrutura da canção, aos
seus efeitos, quanto na significação cultural e nos afetos
de que é portadora. A afirmação continuada de uma posição
crítica tem de ser sempre surpreendida nas transformações
do trabalho do artista, captando, assim, as desconti-
nuidades, as reiterações e as reelaborações de temas, proce-
dimentos e pensamento. É absolutamente necessário atentar
à mobilidade dos processos de invenção, tanto quanto
tentar perceber a metamorfose da vida nas formas através
dos processos de enunciação. De outra maneira, se pro-
duziria a disjunção entre o artista, com suas criações, e o
homem público - o que, aliás, muitas vezes ocorre, inclu-
sive com cobrança de posições. A coerência de um artista
tem de ser buscada no desenvolvimento de seu trabalho,
principalmente quando este artista é também uma perso-
nalidade marcante, que faz parte do sistema do espetáculo,
sujeito, assim, a injunções, interesses e expectativas diver-
sificadas, tendo o seu comportamento avaliado continua-
mente. É com a atividade tropicalista que o domínio da
canção deixou de ser um objeto cultural situado quase que
exclusivamente na esfera do entretenimento para alçar-se
em realização propriamente artística, estética e cultural-
mente em sintonia com a literatura, o cinema, o teatro e as
artes plásticas - um fato hoje óbvio e banal, mas que na-
quele tempo não era tão simples, como demonstram muitos
trabalhos à disposição, desenvolvidos nas últimas décadas,
em torno da constituição da modernidade no Brasil. Na
passagem dos anos 1960 aos 1970, Caetano Veloso confi-
gurou em seu trabalho, canções, declarações, atitudes e
gestos a profunda mudança da experiência daqueles que
se associaram, em arte, política e cultura, às posições críticas
que deslocaram as polarizações firmadas.

Cult E como essa intervenção vem ocorrendo ao longo
de sua carreira e atualmente?
C.F.F. O trabalho de Caetano vem se desenvolvendo em
duas dimensões simultâneas. A primeira é aquela que
pensa a canção brasileira, articulando um modo particular
de entender a tradição “que se foi construindo com o
samba e em conjunção com tudo o que o rádio e o disco
foram liberando “, aí elegendo as músicas marcantes em
sua formação cultural e na afetividade. Como ele tantas
vezes declarou, canções que ouviu desde criança, que circu-
lavam no dia-a-dia, gerando um gosto, um sentimento,
um pensamento que não se define, pois configura uma
experiência de vida singular e intransferível, em que gosto
e valor cultural coincidem. A outra dimensão é histórica.
Insere-se naquela tendência iniciada no século XIX pelos
intérpretes do nacionalismo, intensificada pelo interesse
dos modernistas em conhecer o Brasil e que foi marcante
até os anos 1960. Trata-se de ver em Caetano, a partir do
tropicalismo, alguém empenhado em questionar as imagens
emblemáticas de Brasil, respondendo, criativa e critica-
mente, à drummondiana pergunta: onde é Brasil? E, prin-
cipalmente, tratando-a com uma crítica virulenta ao estreito
nacionalismo, tanto quanto ao conservadorismo cultural.
Para ele, já naquele tempo, o Brasil importa, e muito, como
“ponto de ver e não de ser”. Isso fez dele, desde o início,
um moderno, um cosmopolita, um pensador em quem a
paixão da cultura onde surgiu como artista destacado não
exclui a visada mais larga do existir incondicional. A
imposição modernista, “precisamos conhecer o Brasil”,
converteu-se, no tropicalismo, na também drummondiana
“precisamos esquecer o Brasil”, pois “nenhum Brasil
Existe”. E, no entanto, o que não é um paradoxo, o seu
interesse sempre esteve voltado para o Brasil, está patente
em Verdade tropical e em outros textos, em entrevistas e
polêmicas. Assim, a reflexão sobre a canção e na canção é
sempre atual, levando a felizes achados, a canções logo
integradas ao imaginário da tradição musical brasileira
como elementos de uma escuta ao mesmo tempo seletiva e
disseminada - o que só ocorre com artistas que inscrevem
com seu trabalho um sujeito impessoal, tradutor involun-
tário, entretanto, de uma língua coletiva. Importa, antes
de tudo, aquilo que está dito nas canções. As duas dimen-
sões acentuadas aparecem conjugadas não por uma redu-
tora e exclusiva atividade profissional. Caetano dá a impres-
são de agir por uma necessidade interna, própria daqueles
que têm o que dizer, ora deixando em evidência circuns-
tâncias e motivações culturais próximas, ora traduzindo o
trabalho em que a memória se transfigura em experiência.

Cult Como se dá esta passagem entre memória e expe-
riência?
C.F.F. Tocamos aqui no que me parece ser o ponto central
do processo criativo de Caetano: um trabalho conduzido
pelo processo de elaboração, semelhante ao da elaboração
analítica, a perlaboração (durcharbeitung) freudiana. Nas
reinterpretações, nas associações, é sensível a escuta de um
pensamento que sente, ou um sentimento que pensa. Cae-
tano dá a idéia de que um fluxo interior articula sons e
palavras configurando idéias, mas que o móvel da articu-
lação é uma memória, seletiva ou involuntária, que faz do
ato de ouvir suas canções uma experiência que, no limite
pergunta: existir, a que será que se destina? Há um tempo
nas canções de Caetano que, embora possa indiciar o
presente, ou um passado, é sempre, na verdade, um entre-
tecimento de passado e presente, uma incorporação de tem-
pos e lugares, de ações e pensamentos, de um sentir concen-
trado. Presente é sempre, é agora, o que faz de sua história
uma contínua rememoração. Vejo na excelência das reinter-
pretações que faz de canções, sobretudo antigas, a confir-
mação deste trabalho de rememoração, de reelaboração de
vivências e referências culturais. Memórias do passado no
presente, fatos imediatos da história individual e social, o
lido, o visto, o ouvido, tudo acaba condensando imagens
que, sem perder o seu teor designativo, são poéticas, emo-
ção recordada na tranqüilidade. Basta que se percorra as
canções, desde as primeiras, para se ver como o que aparece
como prodígio de memória “ e não deixa de sê-lo” traz à
tona fragmentos, cacos, resíduos, traços de experiência,
associando o vivido ao tumulto do presente. O presente é
sempre o lugar da enunciação, com o que, em Caetano, não
há qualquer nostalgia ou saudade. A sua poética é, assim,
afirmativa, elaboração contínua de um fluxo existencial em
que o pessoal e o histórico não se distinguem.

Cult Você acha que a obra musical de Caetano opera alguma
síntese entre as tradições da poesia e da música brasileiras?
Quais seriam essas tradições e como se dá tal síntese? Você
vê e ouve algum projeto literário bem nítido e delineado?
C.F.F. Não me parece que a questão de Caetano seja a de
estabelecer sínteses entre poesia e música e, menos ainda,
delinear um projeto literário, embora esse seja um tema
sempre relembrado quando se trata de assinalar a maestria
de sua construção textual, inclusive porque os textos das
suas canções podem ser lidos como poesia - o que, aliás, é
um fato inquestionável -, situada no nível do que melhor
se fez e se faz no Brasil. Desde o início de sua produção,
a literatura funcionou como um implícito do sentimento e
do pensamento que circula nas canções, mas não me parece
existir nele um projeto literário, mesmo quando faz um
disco chamado Livro, em que o livro é tema, ou quando
faz um disco como este que nasceu da leitura de Nabuco.
Caetano faz canção e esta é estruturalmente híbrida, como
tão bem mostram os estudos de Luiz Tatit. Caetano absorve
em suas canções procedimentos literários, cuja percepção
nem sempre é fácil, dependendo do espectro cultural dos
ouvintes. É preciso conviver longamente com as canções
para aos poucos ir descobrindo o que é citação e o que é
absorção, transfiguração, transpiração; sempre invenção.
A sensibilidade de Caetano é apurada, cultivada por leituras
diversificadas, de poesia, filosofia, ficção, estudos críticos
e culturais: João Cabral, Drummond, Clarice, Joyce, Sar-
tre, Guimarães Rosa, por exemplo. De tudo sobrou, sobra,
um pouco e, não se sabe como, assoma na criação. Assim,
Caetano tem na história da música popular brasileira um
lugar à parte: os seus textos incorporaram as poéticas
modernas, as operações vanguardistas, de modo excep-
cional, o que faz com que o tratem como poeta. Não é o
caso, embora seja um grande escritor. Lembro, por exem-
plo, como importante, além das canções, da escrita insti-
gante, daqueles textos que escreveu em Londres, no exílio,
recolhidos, não sei se na totalidade, na coletânea Alegria
alegria organizada por Waly Salomão, que clama por uma
reedição, acrescentada de vários textos que vieram depois.
Assim, o nível excepcional da realização textual de Caetano,
que o coloca com facilidade ao lado de muitos outros poetas
contemporâneos, não justifica entretanto assimilá-lo à
categoria restrita de escritor; ele é um cancionista, algo
mais complexo estruturalmente, e mais complexo na
manifestação, pois inclui, no disco ou no show, os rigores,
os êxtases e a eficácia de um outro modo de manifestação
do artístico. É interessante notar que Caetano tenha
raramente musicado poemas, em escolhas estratégicas no
horizonte de seus processos enunciativos, referências esté-
ticas e adequação a momentos específicos da produção.
Talvez porque, vindo antes a música ou a letra, ou ambas
simultaneamente, a canção tem a particularidade de ser
uma linguagem motivada. O som chama a palavra e vice-
versa. Uma vez aparecida a canção, o seu texto pode ser
alvo, como tem sido, de fruição e análises puramente literá-
rias, poéticas. Boa parte da produção de Caetano suporta
a comparação com os textos nascidos como poesia: e isto é
um notável fator distintivo de sua produção, por si só
merecedora de toda nossa admiração. Contudo, o mistério
da canção é ela ser outra coisa, um objeto não identificado.

Cult A fase tropicalista parece concentrar de modo mais
evidente as relações com outras obras e artistas da cultura
nacional, talvez pela própria natureza (ou projeto) do movi-
mento e o contexto do momento. Com que instâncias o
diálogo foi mais frutífero? Qual o papel da forma “literá-
ria” das letras nesse diálogo?
C.F.F. Sem dúvida, o momento tropicalista, como tanto
já foi dito, notabilizou-se em grande parte por realizar a
intersecção e a mistura de gêneros, referências artístico-
culturais, índices político-sociais, a fusão do erudito e do
popular, a inclusão dos processos e das imagens da cultura
de massa. Havia consciência clara do que se fazia, do que
se queria: intervir no sistema da música popular e intervir
de modo específico, estridente e intensivo nas relações fixa-
das entre arte e cultura. O momento tropicalista realizou
aquilo que precisava ser feito e que estava obstado pelas
polarizações e preconceitos: a realização da modernidade
cultural, da atualização das artes, de renovação dos modos
de significação do social e de questionamento do seu uso
político. A metáfora antropofágica, reatualizada de acordo
com as novas condições de produção cultural, foi aplicada
com propriedade pelos tropicalistas, permitindo-lhes ar-
ticular efeitos crítico-criativos de extrema eficácia. O uso
de procedimentos cinematográficos, plásticos, poéticos, tea-
trais, de música contemporânea, provenientes das experi-
ências de vanguarda que circulavam no ambiente artístico
em toda parte, resultou em um processo de composição
híbrido, inusitado, brilhante. O brilho estava fundamental-
mente na construção das imagens, através de um hábil
emprego da paródia, da sátira e do humor, com a produção
de uma figuração alegórica até então desconhecida no
Brasil. Pois a alegoria tropicalista tanto designava o con-
texto como evitava a simbolização, a proposição de uma
imagem de Brasil que viesse utopicamente substituir aque-
la criticada por todos, a do nacional populismo. A forma
literária das letras vagava entre o uso de procedimentos
vanguardistas em circulação, desde os cubistas, dadaístas
e surrealistas até os concretistas, sem que o lirismo básico,
fundamental, da canção brasileira estivesse ausente, como
suporte dos procedimentos vanguardistas, de citações, pas-
tiches, colagens, bricolagens etc.

Cult A obra do artista, com sua carga de informação
estética, se difunde no meio da comunicação de massa.
Como ele transita entre (ou concilia) os repertórios de
novidade (esfera da própria criação) e redundância (esfera
da música de consumo), arte e mercadoria, chic e kitsch?
C.F.F. Para Caetano, o aspecto comercial, intrínseco à
materialidade da canção, nunca foi um problema, ao con-
trário. Esse foi um de seus combates mais importantes
contra as ilusões que, nos anos 1960, fingiam que seria
possível fazer arte sem compromissos com o mercado. A
questão nunca foi simplesmente a da difusão dos produtos
culturais pelos meios de comunicação de massa; o mais
importante é considerar o mercado como um aspecto da
própria criação. Para Caetano não se tratava de conciliar
os aspectos estéticos aos comerciais, mas sim de trabalhar
já no nível das duas instâncias enquanto simultâneas, dados
o gênero e a destinação dos produtos. Se nesse ou naquele
disco um dos aspectos prevaleceu, se uma ou outra canção
é mais ou menos permeável ao consumo, no todo isso é
irrelevante. Interessa, entretanto, como indicativo de uma
conquistada liberdade, onde muitas posições são possíveis.
Importa que Caetano nunca teve medo de correr riscos,
de cantar o que gosta, “o que pede para se cantar”, de
violentar o gosto estabelecido, de inovar, de discutir.
Compondo, cantando, falando, Caetano está sempre pen-
sando questões que se põem no fluir da existência pessoal
e social.

Cult Em “O estrangeiro”, o compositor confessa: “sigo
mais sozinho caminhando contra o vento” e (no final):
some may like a soft brazilian singer/ but I’ve given up
all attempts at perfection”; em “Branquinha”: “vou con-
tra a via/ nado contra a maré”. Esses toques podem ser
lidos num contexto mais amplo no trajeto do compositor?
Em que escala e alcance?
C.F.F. Na canção, “Janelas abertas n° 2”, Caetano diz:
“mas eu prefiro abrir as janelas pra que entrem todos os
Insetos”. Essas palavras abrem-se para o incomensurável
da experiência contemporânea, para toda a imprevisibi-
lidade e a indeterminação de uma trajetória que se afirma
sobretudo pela coragem de seguir “sozinho caminhando
contra o vento”, nadando “contra a maré”, embora sempre
acossado por vozes que cobram uma retificação de suas
atitudes supostamente vinculadas a um compromisso so-
cial anteriormente firmado. Mas, assim como desde cedo
não quis “viver a nostalgia de tempos e lugares”, também
não admitiu que sua inspiração fosse circunscrita por
compromissos que um dia se manifestaram em suas
canções com a força do tom justo no tempo oportuno. No
manifesto Jóia, Caetano dizia “estar cuidadosamente entre-
gue ao projeto de uma música posta contra aqueles que
falam em termos de década e esquecem o minuto e o milê-
nio”. Assim, vejo em Caetano alguém que realiza na mú-
sica brasileira um trabalho cujo alcance pode ser realçado
recorrendo-se a algumas idéias de Deleuze sobre a relação
entre literatura e vida, expostas, por exemplo, em Crítica e
clínica. Diz ele que a literatura traça no interior da língua
“uma espécie de língua estrangeira”, isto é, “um devir-
outro da língua (...), uma linha de feitiçaria que foge ao
sistema dominante”. Este é um traço distintivo de Caetano;
em suas canções, tensiona a língua até os seus limites, por
atos de enunciação sempre singulares, uma produção
intensiva de sentido, em que o sujeito é suplantado por
agenciamentos coletivos de enunciação. Nisso, acima de
tudo, deve-se ver o político, a significação social da arte de
Caetano, e não, simplesmente, no vai e vem das declarações
que as circunstâncias e as paixões mobilizam nele, na
imprensa e na crítica.

___________________________________________________

Carlos Adriano
mestre em cinema pela USP e cineasta
Bernardo Vorobow
curador de cinema e programador cultural
 


   



Cult Movies 18

O Cinema Falado, filme
experimental de Caetano Veloso


C I N E M A   D E
I M A N Ê N C I A
                              CARLOS ADRIANO

Muito falado e pouco visto, O cinema falado, filme experimental
de Caetano Veloso que segue a linhagem do disco Araçá azul e
de algumas canções de Velô, Uns e Outras palavras, toma
partido da vereda autoral e foge às convenções narrativas e
técnicas, afinando-se à pesquisa e à recusa de fórmulas
  
  



O primeiro, e (até agora)

único filme de Caetano

Veloso foi assim definido

por ele: “O cinema falado não

é um filme. É um ensaio de ensaios

de filmes possíveis para mim e para

outros”.

Dois meses antes da estréia, noti-

ciou-se o título “definitivo” Filme de

ensaios: O cinema falado. Demarcando seu

projeto de experimentação, faz dis-

correr um mundo mental de reflexões

segundo gosto pessoal, repertório ar-

tístico e princípio estético, em formas

associativas, disjuntivas e digressivas.

A fala encena o papel principal e

está no foco do tema e da ação, em

estatuto quase ontológico que ecoa um

verso de “Outras palabras” (“como

na palavra palavra a palavra estou em

mim”). É um cinema da fala. O dis-

curso verbal adquire existência autô-

noma da narração diegética e instaura

a enunciação irredutível, de acordo

com o conceito de cinema paramé-

trico-estrutural (esses conceitos foram

pesquisados por mim na dissertação

de mestrado Um cinema paramétrico-

estrutural: Existência e incidência no cinema

brasileiro apresentada à USP, sob a

orientação preciosa de Ismail Xavier).

O filme paramétrico-estrutural é

o que aciona procedimentos formais

que libertam os parâmetros da gramá-

tica cinematográfica (por exemplo: o

movimento da câmera e o corte valem

por si mesmos no jogo de significa-

ções). Esses elementos constituem o

cerne da experiência de percepção no

cinema.

No filme de Caetano, o parâmetro

da fala (monólogo, diálogo) já é e-

nunciado no título e na abertura  a

zoom-out da boca do cineasta Julio

Bressane dizendo: “na língua portu-

guesa, a palavra prosa também quer

dizer conversa, conversação”. Daí, ele

aponta para uma bandeja que passa

na festa caseira: “dois dedos de pro-

sa”, detonando o ritmo da profusão

de paródias e associações de citações

que o filme vai levar a cabo, de boca

em boca.

Há partes anunciadas por letrei-

ros compartimentando cinema, músi-

ca, dança, pintura, literatura, mas as

disciplinas estanques se inquietam,

contaminam-se e se interpenetram. O

texto polivocal do filme encadeia no

cordão inconsútil Godard e Wenders,

Webern e Cage, Tom Jobim e João

Gilberto, Hélio Oiticica e Picasso,

João Cabral e Augusto de Campos.

O cinema falado é um filme de

ousada radicalidade quanto à opção

autoral.

O que é interessante (ou fácil e ao

mesmo tempo difícil), em se tratando

de um artista que implantou uma

revolução na música popular e atua

no mercado do show bizz de modo

paradoxal. É obra de “um dos ver-

dadeiros individualistas da música”

(para citar a definição da resenha de

Noites do norte publicada no New York

Times).

Luciano Figueiredo, um dos mais

inventivos artistas plásticos do Brasil

e diretor de arte de O cinema falado,

declarou à época do lançamento: “o

filme não é escravo das citações”.

Curiosamente, é uma frase que

conversa (retro e prospectivamente)

com a afirmação de Caetano sobre si

mesmo (na entrevista publicada nesta

edição): “eu sou escravo das canções”.

A estréia do filme ocorreu em 1986

no FestRio, sob apupos (na estréia em

São Paulo, colheu aplausos). A ira ne-

gativa angariou diretores esteticamente

tão discrepantes quanto Arthur Omar

e Suzana Amaral.

Sem ter visto o filme nem querer

fazê-lo, a diretora definiu Caetano

como “urubu da vanguarda, que vive

copiando cadáveres” e sentenciou o

bordão: “se não tenho talento para uma

coisa, não me atrevo a fazê-la; cada

macaco deve ficar no seu galho” (ao

que ela foi aconselhada “a ficar em casa

passando óleo de peroba nos móveis”

e a voltar ao tanque e ao fogão).

Noticiou-se que o cineasta Arthur

Omar se manifestou inexplicável e

acintosamente durante a projeção,

protestando contra a “estética ultra-

pasada” de uma obra “que parece

mofada”, como ele alegou. Ele também

questionou “a utilização maciça da mí-

dia, que colocou o filme como inova-

ção”. Omar - artista original e radical

da vanguarda brasileira - ponderou:

“Não gosto do filme, mas sou solidário

com ele na medida em que assume, de

forma radical, a autoria. É um filme

radicalmente pessoal e autoral”. E com-

pletou: “A palavra no cinema brasileiro

já foi explorada com maior radicalismo

e sutileza. Mas se trata de um filme

rico, cujo potencial de discussão não foi

esgotado, sequer foi tocado”.

Julio Bressane, outro cineasta radi-

cal, inovador e original, um autor

seminal do cinema nacional, afirmou,

lapidar e contundente: “o filme causou

estranheza porque é um filme mental

e a platéia é pré-mental”.

No coro dos contrários e descon-

tentes, fora a reação de Omar, parece

ter havido um certo compadrio corpo-

rativista da classe, que confundiu inva-

são de áreas e inversão de competên-

cias, reduzindo a apreciação ao mero

fato de existir o filme de um cantor

famoso da música popular (e que pa-

recia ameaçar a seara alheia).

O cinema falado referendava a Belair

- produtora de Bressane, Sganzerla e

Helena Ignez, que perpetrou criativo

“terremoto clandestino” em 1970, ao

fazer em três meses sete filmes de arro-

jada e radical fatura - e ia na contramão

da “estética publicitária” e do “culto

tecnicista” que grassavam no cinema

da década de 1980.

As despojadas condições de produ-

ção do filme, que muitos encaravam

como “amadorísticas” (mas que se in-

seriam numa tradição de ruptura e

seguiam o esquema de produção dos

discos do autor), sinalizavam uma ati-

tude de negação à meta de um certo

cinema brasileiro “profissional”, an-

sioso por ser legitimado pelo crivo da

competência e da eficiência industriais

como produto de bilheteria.

Vale citar, no aspecto “filme casei-

ro”, que um dos gêneros do underground

americano - movimento-chave na  ra-


dicalização e difusão da vanguarda no
cinema - justamente se pautava no
caráter livre e espontâneo do home-
movie. É claro que havia outras ten-
dências no experimental que explora-
vam o caráter rigoroso e predeter-
minado das formas - como o cinema
estrutural.
Mas cineastas como Stan Brakhage
e Jonas Mekas redefiniram o vocabu-
lário fílmico ao subverter os expe-
dientes banais do filme doméstico.
Mekas registrou toda uma (sub)cul-
tura no chamado filme diário. E
Brakhage (um dos mais influentes
cineastas da avant-garde) criou uma
obra monumental, de complexas con-
junções, no âmbito do cinema mito-
poético.
Portanto, poderia ser (além de
pertinente ao projeto intrínseco) uma
estratégia de “mercado” de Caetano,
face à sua ligação com o mundo do
consumo da música popular: um fil-
me “caseiro” (e tecnicamente bem-
acabado) que dá vazão à veia inovadora
no circuito redundante do pop.
Filme muito falado e pouco (mal)
visto, merece objetiva re-visão (e que
tal lançá-lo em DVD, distribuidores?).
Se, algum dia, for escrita uma história
do filme experimental no Brasil, O
cinema falado deverá ocupar um capítulo
ao lado de suas mais altas realizações
(independentemente do fato de ter sido
feito por um compositor e cantor de
música popular).
Longe das paixões de circunstân-
cia, vale a pena tentar ver o ponto de
inflexão deste filme deslumbrante na
“linha evolutiva” do cinema brasileiro
(para remeter a uma expressão de Cae-
tano sobre o corte epistemológico de
João Gilberto e do tropicalismo na mú-
sica brasileira).
O filme dialoga com diretores e es-
colas da história do cinema, sintoni-
zado à vertente mais experimental (o
que é uma opção não muito comum
no cinema brasileiro). E, nesse viés,
esbanja coragem e integridade (artigos
meio em falta no mercado cultural das
duas últimas décadas do século XX).
Sua proposta foge das convenções
narrativas (entrecho episódico, códigos
de representação, modos de identifica-
ção e ilusão) e técnicas (média de “boa”
produção, critérios de comércio e con-
cessão popular). Assumido como fil-
me de ensaios e ensaio de filmes, toma
partido da vereda autoral (o diretor do
filme na primeira pessoa do singular),
afinando-se à pesquisa (metalinguagem,
realidade da experiência, descontinui-
dade e alusão) e à recusa de fórmulas
(exigências próprias, intransigência éti-
ca e compromisso estético).
Cada seqüência coloca questões no
limite confessional e o risco de interrogá-
las irredutivelmente. Até por tais pre-
ceitos, a irregularidade imprevisível de
resultados é um dado inerente à aventura
da audácia (que se traduz vulgarmente
no provérbio: “sem chute, não há gol”).
“Objeto quase artístico”, o filme
O cinema falado está na linhagem do
disco Araçá azul e de algumas canções
de Velô, Uns e Outras palavras (e outros
discos de teor mais experimental). Se
o visionário Abel Gance vaticinou que
“o cinema é a música da luz”, Caetano
fez seu solo nessa pauta, partitura de
vícios e virtudes dos artistas que re-
gem suas ambições entre cinema e
música.
O filme privilegia o discurso ver-
bal, mas problematiza a tensão ima-
gem/som. Citemos brevemente momen-
tos em que a fala assume autonomia
(“parâmetro-estrutural”) em relação a
outros níveis diegéticos.
Tomemos dois longos planos-se-
qüências (os poucos cortes parecem ter
sido exigidos por eventuais erros ou
porque a fala não cabia no tempo do
chassis da câmera e da bobina do ne-
gativo). Um texto de Thomas Mann
(casamento, homoerotismo) é dito por
Paulo César de Souza no original
alemão (com legendas). O tradutor está
na praia, de costas para a câmera.
Escassa, a decupagem é reiterativa, res-
saltando o texto em sua matéria mesma,
corroborada pelo impacto da língua
estrangeira naquele ambiente. Noutra
seqüência de parcos cortes, um trecho
de Grande sertão: Veredas é dito por
Hamilton Vaz Pereira, após comentar
a adaptação televisiva. Saindo do sofá,
o diretor de teatro vai para um canto
da sala, junto à parede espelhada, e




passa a falar o (desdramatizado) texto.

A discreta enunciação destaca entona-

ções e ritmos que dão ironia e tom ao

escrito.

A seqüência com o poema Orga-

nismo, de Décio Pignatari, contrasta fala

e corpo emissor. Após a coreografia

estática de um homem negro e uma

mulher branca no piso em preto e

branco, ocupando as áreas de cor con-

trárias à cor da pele (alusão ao filme

Pátio de Glauber Rocha, xadrez con-

cretista de corpos), o rapaz (aparência

simples) declama. Há um choque (pelo

repertório culto do poema) e uma iden-

tificação (pelo teor gozoso do texto),

provocando um estranhamento seme-

lhante àquele produzido por Pasolini

quando fazia proletários e prostitu-

tas(os) dizerem textos clássicos da alta

literatura italiana. O filme traz ainda

poemas de outros autores, lidos e audio-

visualizados, em outras claves.

Voz e enunciação são conjugados

em diversos termos cotidianos. Uma

cena popular exibe o depoimento da

atriz Regina Casé, comentando a ex-

periência de ter visto Fidel Castro

operar seu discurso público-político.

Como numa entrevista informal, ela

imita gestos e posturas do comandante

cubano, opinando sobre a eficácia da

comunicação. O dote histriônico da

atriz contamina a interpretação, numa

performance que parodia a inflexão

política e o estilo pseudo-íntimo de ce-

lebridades da mídia.

Em outra cena, Regina Casé inter-

preta (distanciada e antinaturalistica-

mente) trechos da novela Melanchta, de

Gertrude Stein (traduzidos por Cae-

tano). A prosódia coloquial do texto

culto-despojado ganha dimensão poéti-

ca com as estranhas (e coloquiais) ima-

gens, como a passagem do trem trans-

formada em borrões abstratos de luz e

cor na estação ou a melancolia lírica da

favela embalada por Billie Holiday.

Outro momento popular do filme,

alcançando clímax de crispada beleza,

é quando Dona Canô canta “Último

desejo”, de Noel Rosa. A voz afina

noutro diapasão ao lembrar o denomi-

nador comum de Noel - foi a audição

de Aracy de Almeida sambando o pri-

meiro verso de “Não tem tradução”

que motivou o filme (“o cinema falado

é o grande culpado da transforma-

ção”). E podemos pensar como o ci-

nema (ainda mais da fala) é mesmo

um agenciador de transformações em

múltiplos sentidos e esferas.

A coda do filme genial é até

programática (pelo devir utópico da

vanguarda), com uma citação de

Heidegger, que Caetano dizia no show

“Velô”. Depois ele resolveu, como nos

contou, “usar como texto final do

filme, dito por uma criança do sexo

feminino ao som de uma peça de John

Cage para piano preparado”. Para ele,

“A história toda é curiosa, pois no

‘Velô’ eu só falava duas breves vezes.

Esse texto de Heidegger num dado

momento e, em outro, um trecho de

O homem sem qualidades, de Musil

(adoro esse livro), que era algo sobre

o homem que, habituado aos pânta-

nos, é incapaz de reconhecer profun-

didade quando vê a imensidão brilhan-

te do océano”.

No misterioso plano final, Nina

(filha do compositor Péricles Caval-

canti e da produtora Lidia Chaib) fala

na relva: “Igualmente incerto perma-

nece se a civilização mundial será em

breve subitamente destruída ou se se

cristalizará numa longa duração que

não resida em algo permanente mas

que se instale, muito ao contrário, na

mudança contínua em que o novo é

substituído pelo mais novo”.

O compositor de Cinema trans-

cendental fez um filme de invenção e

imanência. Em O cinema falado,

Caetano Veloso toca questões aborda-

das por Deleuze em Imagem-tempo,

como a apurada noção de tempora-

lidade e o encanto da depuração dos

noosignos na esfera musical do pen-

samento.

O cinema falado não é “cinema falido”

nem “falhado”, como insinuou a male-

dicência troça-dilhesca de seus detra-

tores ignorantes. Obra-prima de rigor,

é um cinema de falésia, porque de ousa-

dia e desafio.





Carlos Adriano

cineasta, realizador dos filmes Remanescências, A Voz e o Vazio:

A Vez de Vassourinha e A Luz das Palavras

Texto redigido com a colaboração de Bernardo Vorobow



   

Na Ponta da Língua 26

As várias línguas da canção
"Língua", de Caetano Veloso






“GOSTO DE SENTIR
A MINHA LÍNGUA...”
Pasquale Cipro Neto



Vários dicionários (o Aurélio, o de

Caldas Aulete, o etimológico de Ante-

nor Nascentes, entre outros) dão co-

mo hipotética esta origem de “roçar”:

do latim “ruptiare”, proveniente de

“ruptus”, particípio passado de “rum-

Pere” (“dilacerar”, “arrancar”, “ras-

gar”, “abrir”, “varar” etc.). Estes são

alguns dos significados que os dicio-

nários enumeram para “roçar”:”1. Pôr
abaixo; cortar, derrubar/ 2. Gastar com
o atrito/ 3. Atritar, esfregar, friccionar/
4. Tocar de leve, brandamente/ 5.
Passar junto de; rentear”.
Todas essas acepções de “roçar”
cabem na leitura de “Gosto de sentir
a minha língua roçar a língua de Luís
de Camões”. Mestre Manuel Said Ali
(apud Evanildo Bechara) diz que
Camões, “não sendo propriamente o
criador do português moderno (...),
libertou-o de alguns arcaísmos e foi
um artista consumado e sem rival em
burilar a frase portuguesa, descobrin-
do e aproveitando todos os recursos
de que dispunha o idioma para re-
presentar as idéias de modo elegante,
enérgico e expressivo. Reconhecida a
superioridade da linguagem camonia-
na, a sua influência fez-se sentir na
literatura de então em diante até os
nossos días”.
A “língua de Camões” invariavel-
mente nos remete ao português de
Portugal, embora se saiba que o ritmo
camoniano está mais próximo da ver-
tente brasileira do português do que
do idioma hoje falado em Portugal, o
que se explica pela consonantização de
que se impregnou a língua da metró-
pole. Se “roçar” de fato vem de “rup-
tiare”, de “ruptus” e de “rumpere”,
tem a mesma origem de “romper”.
O roçar de que fala Caetano inclui a
idéia de ruptura, inevitável num caso
como o da relação do português de
Portugal com o português do Brasil.
Ao fim e ao cabo, a nossa língua
realmente “roça” a língua de Camões:
é e não é essa língua, fez-se e faz-se
dela e nela, é-lhe fiel e trai-a, roça suas
pernas nas dela e (às vezes, muitas
vezes) copula com ela...
Não é por acaso que, sem perder a
oportunidade de criar belos efeitos me-
talingüísticos (“do Pessoa na pessoa”,
“da rosa no Rosa”), Caetano cita como
afluentes desse mar glotológico um por-
tuguês, essencialmente poeta, castiço
(Fernando Pessoa), e um brasileiro,
romancista, lingüisticamente inovador
(Guimarães Rosa). Rosa, por sinal, ins-
pirou um verdadeiro monumento da
língua, a belíssima “A terceira margem
do rio”, texto com que Caetano “le-
trou” a primorosa música de Milton
Nascimento.
Esse encontro Rosa/Pessoa talvez
defina bem o que sempre marcou a
trajetória lingüística da obra de Cae-
tano Veloso. Do rigor quase parnasia-
no de “Livros” (obra-prima do anto-
lógico disco Livro) ao coloquialismo
de “Vamo comer”, do experimenta-
lismo do genial disco Araçá azul (e de
outras obras que têm forte relação
com a poesia concreta) e da erudição
de “O estrangeiro” à informalidade
de “Eu sou neguinha?” e de “Não en-
che”, o trabalho de Caetano nos dá
um substancioso extrato do que há de
inteligente e inovador na linguagem da
poesia brasileira destas últimas quatro
décadas






Gosto de sentir a minha língua roçar

A língua de Luís de Camões

Gosto de ser e de estar

E quero me dedicar

A criar confusões de prosódia

E uma profusão de paródias

Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixa os portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua”
Fala, Mangueira!
Flor do Lácio, Sambódromo
Lusamérica, latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?


             “Língua”, Caetano Veloso




Em antológico texto, Fernando

Pessoa afirma que Portugal poderia

desaparecer, desde que nada ocorresse

à língua portuguesa (“Minha pátria

é a língua portuguesa”). Açambarcan-

do o texto de Pessoa e expandindo o

universo daquilo que o poeta por-

tuguês diz que pode sumir (“por-

tugais”, no plural e com inicial minús-
cula), Caetano também declara seu
amor à língua (“A língua é minha
patria”) e convoca como testemunha
a Mangueira (“Fala, Mangueira!”),
prova viva do que o poeta afirma em
“Flor do Lácio, Sambódromo”.
“Flor do Lácio” é alusão explícita
ao memorável poema “Língua Por-
tuguesa”, de Olavo Bilac (“Última
flor do Lácio, inculta e bela...”).
“Lácio” é o nome português do
Latium, região em que fica Roma. A
língua do “Latium”, obviamente, é o
latim. Por ser a mais jovem das lín-
guas neolatinas, o português é a “últi-
ma flor do Lácio”. “Sambódromo” é
palavra do português brasileiro, mas
é o encontro de um elemento africano
(“samba”) com um grego (“dromo”).
Caetano vai de Roma (“Flor do
Lácio”) ao Rio de Janeiro (“sambó-
Dromo”) em uma linha! Viaja por dois
mil anos de história em uma linha!
Bem, afinal, o que quer, o que po-
de esta língua, em que “to be” se pode
traduzir por “ser” ou “estar” (“Gosto
de ser e de estar”)? Quer muito. E
pode muito! Pode ser instrumento
para que se cumpra o desejo expresso
em alguns versos de “Língua” (“A
língua é minha pátria/E eu não tenho
pátria: tenho mátria/ E quero frátria”),
ou seja, pode ser elemento de união,
de igualdade, de fraternidade. Pode-
se até filosofar com essa língua, con-
quanto alguns doutos não consigam
entender a ironia de Caetano em “Está
provado que só é possível filosofar em
alemão”, frase do ideário nazista do
filósofo alemão Heidegger. Imagine,
caro leitor, que um luminar de uma
das nossas escolas de Letras perdeu o
seu precioso tempo para escrever-me
uma carta em que desancava a mim e a
Caetano, aos quais chamava “precon-
ceituosos e retrógrados”. A mim, por
ter dito em um programa de televisão
que existe determinada regência verbal
(“pensar um ferimento”, ou seja, “co-
bri-lo com curativo”); a Caetano, por
“dizer” que em português não é pos-
sível filosofar. “Mas essa criatura não
entendeu a ironia?”, disse-me Caetano,
rindo desbragadamente.
Ignaras e paranóicas, as patrulhas
(e as há, como as há!) não se cansam
de perseguir Caetano. E até no ofício
de livrar-se delas ele é criativo. O úl-
timo tapa de Caetano nessas tropas é
justamente o tapinha, que dói, como
dói. Engatado em “Dom de iludir”,
o refrão (“Só um tapinha não dói”)
soa como algo rodriguiano e é repetido
até perder o “não”.
A cultura brasileira e a língua por-
tuguesa devem muito a Caetano. Não
seria difícil fazer o “inventário” dessa
dívida, mas talvez faltasse espaço. Muito
obrigado, caro Caetano, por ter lançado
e lançar tantos mundos no mundo.
Até a próxima. Um forte abraço


_________________________________________________________________
Pasquale Cipro Neto
professor do Sistema Anglo de Ensino, idealizador e
apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TV Cultura,
autor da coluna Ao Pé da Letra, do Diário do Grande ABC e de
O Globo, consultor e colunista da Folha de S. Paulo


 













 Bibliografía

 
FAVARETTO, Celso. tropicália alegoria alegria. 3ª edição. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. 192 pág.

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